Mixando arte e vida em 360 ou mais idéias.

14/11/2011 14:59

 

Sobre exposição de Gustavo Goes

Vicente Vitoriano – novembro, 2011

 

Quando me encontrei com Gustavo Goes, ele parecia que se preparava para “soltar o verbo”, atitude incomum numa pessoa naturalmente reservada e de poucas palavras. E ele o fez, enquanto dirigia seu taxi entre Lagoa Nova e a praia de Búzios, onde tem seu atelier. De imediato, sua fala me conduziu à idéia de que produzir arte contemporânea pressupõe a premência de um conceito em torno do qual a obra deve se desenvolver, o que ele mostrou ser fulcro de seu processo criativo. Ao mesmo tempo, vi que o artista também tem a preocupação em obedecer ao “mandamento da arte” segundo o qual o artista deve saber falar sobre seu trabalho. Ficou claro que havíamos lido as anotações críticas de Gisele Kato na revista Bravo! (outubro, 2011) e Gustavo adiantou-se em me informar que também guardava ou estava atento para outro mandamento apontado pela crítica, o de secundarizar o domínio técnico, no caso, o da pintura. Ouvi-o atentamente, procurando pré-preencher meus lapsos de memória ou já tecendo um discurso subseqüente ao seu e que o explicasse.

Quando, enfim, me coloquei diante de suas obras, compreendi que a ordem conceitual havia assumido ares obsessivos em torno do número 36. Tudo começou na circunstância da sua sala de aula, na escola Erivan França, em Pirangi (Parnamirim-RN), quando propôs aos alunos um estudo em torno de Picasso e da criação da “Guernica”, obra de 1936. Desde então, foram 3 anos de elaboração que resultou em 10 pinturas, cada uma composta por 36 pequenas telas, e duas instalações que formam a mostra “Arte em 360 graus”. A cadeia de relações numéricas foi se compondo, então, da data 1936 aos 360 graus da circunferência que se descreve numa viagem em torno do planeta, viagem metaforizada pelas malas/estojos em que o artista acondiciona suas telas ou dispõe em instalações.

A fim de manter a concatenação das obras por esse liame numérico, cada uma remete a ou provém de situações vivenciais do artista, sejam da ordem social, na relação com seus 36 alunos, sejam da ordem pessoal. Destas circunstâncias, próximas às subjetivações parciais suas e de seus alunos, Gustavo avança em busca da alteridade, do mundo material, em busca da própria vida social, para inserir sua obra no âmbito mais específico da produção artística contemporânea.

Podemos apreender uma dimensão arcaizante nessa forma de exprimir subjetividade por mediação de vetores de subjetividades parciais. Isto se dá quando entrevemos que o artista se esforça por reconduzir objetivamente a produção artística à sua condição de submissa aos registros/agenciamentos coletivos, como nas sociedades primitivas (Guattari) ou, ainda, como nas organizações e corporações medievais. Em termos contemporâneos, este esforço se traduz em reconduzir à vida cotidiana, a arte desumanizada do modernismo (Ortega y Gasset), tonificar os estratos perceptuais e afetivos próprios da arte, hoje debilitados pelo fluxo homogeneizante das relações maquínicas ou estritamente informacionais. Com isto, o movimento operado pela ação artística estabelece possibilidades de recriações-de-si (autopoética) tanto dele, como propositor/artista, quanto dos entes relacionais envolvidos, seus alunos e, em última instância, seus observadores, indistintamente também tornados propositores/artistas.  A caracterização que a obra de arte assume nesta operação é apresentada pela crítica e já pela história da arte como arte relacional. Para os estudiosos, esta é uma tendência plasmadora ou definidora do que deva ser a arte atual.

No caso de Gustavo Goes, as “fatias de vida” incluídas nas obras dizem respeito, majoritariamente, à sua atuação como professor de arte, numa abordagem condizente com o apelo relacional da produção artística contemporânea. Mas boa parte da produção contemporânea também se define pela presença de elementos, não só conceituais como também físicos, extraídos do dia a dia do artista, presença esta que implica uma subjetivação evidenciada. Sob este aspecto, chegam ao observador das obras o registro visual da ação dos alunos/pintores, de seus olhares, na imagem de apenas um de seus olhos, na evocação da composição da merenda escolar, esta contabilizada em 36 centavos por unidade, entre outras extrações. Mas, principalmente, a vida privada do artista assoma em específico quando ele insere sua prática de surf por meio do facejamento de uma prancha, numa instalação circular, sintomaticamente móvel por ação do observador.

Da individualidade à alteridade, esta obra de Gustavo Goes protagoniza a arte contemporânea entre nós, dando provas de inteligência criativa, particularmente quando sabe articular pulsões subjetivas e interesses sociais e quando tal engendramento não pretere a atenção para questões específicas da arte. A riqueza de tal declaração tem ancoragem na importância que dá à arte como fator de ampliação de expectativas culturais e de conhecimento, à arte como somatória holística de tecnologias e, enfim, à arte como mediadora de ligações afetivas capazes de resgatar pessoas seja do isolamento ou, em contraponto, da homogeneidade comportamental aos que a vida contemporânea as submete.

 

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